Culpa, sua maldita

“Há uma actividade que fica entre o crossfit e o desporto radical, que todas as mães parecem praticar com um afinco de atletas. Sem tréguas, sem um pingo de cansaço e com alma de campeãs! Que as torna disciplinadas, exigentes e versáteis. Chamada: "Eu sei... A culpa é toda minha!"
As palavras são do Eduardo Sá, psicanalista e psicólogo, que escreve textos curtos, reais e maravilhosos, a quem aconselho vivamente a seguirem (procurem @eduardosa no instagram). Este seu texto sobre esta práctica da “mea culpa” das mães é certeiro e traduz bem este estado inerente a todas as mães e que tanta angústia nos causa.
Suspeito que a culpa de mãe nasça ainda antes da própria criança. Quando percebemos que dentro daquele pequeno feijão que aparece no ecrã do ultrassom já bate um coração, a responsabilidade que isso traz abre logo porta à angústia. E começam as dúvidas, as regras, as dicas inusitadas, os auto-regulamentos. E um café a mais que a conta, um bife um pouco mal passado ou um esforço acima do indicado dão logo lugar á culpa. Começamos logo aqui a interiorizar essa culpa por não sermos perfeitamente perfeitas durante 9 (longuíssimos) meses de gestação.
Ao fim do primeiro ano do bébe já escalamos o pódio e estamos ao nível de campẽas do “mea culpa”. Para trás fica um ano repleto de dúvidas, de aprendizagem, de erros, de aflições e de culpa, muita culpa. Se amamentamos e o bébé tem cólicas, de certeza que a culpa é nossa porque não resistimos aquela colher de mousse de chocolate, ou aquele arroz um bocadinho mais condimentado, ou aquela caneca de leite com um cheirinho de café…Senão amamentamos e o bébé tem cólicas, de certeza que a culpa é nossa porque estamos a dar leite de lata quando devíamos amamentar, e a culpa de certeza que é nossa porque não nos esforçamos o suficiente para tentar amamentar. Se o bébé não dorme bem, de certeza que a culpa é nossa porque não o sabemos embalar / acalmar / deitar …se dorme bem mas ao colo, de certeza que a culpa é nossa porque o habituámos ao colo (Deus nos livre de ter crianças habituadas a colo!!). E se uma mãe de primeira viagem já faz um trabalho excelente em culpar-se por tudo, as vozes que por vezes se levantam, ainda que algumas de boa fé, só escavam ainda mais fundo este buraco negro de autocomiseração.
À medida que a criança vai crescendo, as formas da culpa vão-se metamorfoseando, alargando o leque de razões que a provocam. Se ficámos mais uns 20 minutos no trabalho para acabar uma tarefa que não queremos que fique a meio, ou para adiantar algo para o dia seguinte, sentimos culpa por deixar a criança mais 20 minutos na creche. Mesmo que isso para ela signifique mais 20 minutos no recreio a brincar, e quando a recebemos vem em lágrimas porque até queria ficar mais tempo no baloiço (true story!). Se há uma atividade do dia da dança na escola aberta a pais, mas que acontece em hora de expediente e não abdicamos daquela reunião importante para ir assistir à mesma, sentimos culpa por termos as nossas prioridades todas trocadas e não termos estado presentes para ver a nossa cria rodopiar. A culpa sobe para todo um novo nível se formos confrontados com essa realidade pela própria cria, de mãos na anca e olhar zangado (again, true story!).
Acredito que a cada nova fase da criança, uma nova fase desta culpa miserável surge também. Inusitada, desproporcional, intrusiva e dolorosa.

Culpa, sua maldita!! Chegas sem ser convidada, e apoderas-te dos corações sensíveis e moles das mães, que tentam desesperadamente acertar na forma de fazer as coisas, e deitas abaixo a frágil moral que está a ser construída aos pouquinhos todos os dias. Pegas numa dúvida e transforma-la em angústia ou até desespero. Brincas com os sucessos diários, e desafias os rasgos de coragem e ousadia.
Culpa, sua maldita! Vivíamos seguramente muito melhor sem ti.

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