Alma cheia

Foto: ruitorresphotography


 “Tocámos à campainha, e ouvimos aquele som estridente do trinco da porta a abrir. Subimos o primeiro lanço das escadas, a porta da vizinha de baixo está encostada como é habitual, mas hoje a vizinha não espreita para verificar quem está a entrar. Ao fundo, a porta do quintal está aberta, está sempre aberta. 

Subimos os outros 2 lanços de escadas e chegamos à porta entreaberta.

“Entra, filha.”

Como de costume, a avó está em frente ao fogão, que tem as bocas praticamente todas ocupadas de panelas e frigideiras, com o avental posto e um ar atarefado. 

“Olá ‘Bóbó!” - diz a pequena dando-lhe um rápido abraço pela cintura. Eu dou-lhe um beijinho na testa, e seguro o bebé para ela lhe poder dar um beijo. 

“Não se esqueceu do bife para o seu “neto” favorito, pois não?” - diz o papá, em tom trocista.

“Claro que não! - os olhos da avó iluminam-se - “Espreita lá aqui.” - diz enquanto levanta a tampa da frigideira onde um grande e suculento pedaço de carne acaba de cozinhar. 

O avô aparece ao fundo, vindo do quarto, com uma qualquer revista na mão, que estaria a ler antes de chegarmos.

Sentamo-nos à mesa, onde estão refeições para todos os gostos, como de costume. O bife com batatas fritas para o “neto” emprestado, o empadão de queijo e fiambre que eu e a pequena adoramos, e não podia faltar o peixinho para o avô. A avó não é esquisita, come um bocadinho do empadão, mas o que a alegra mesmo é ver a nossa satisfação a comer.

Conversamos sobre tudo e nada, o avô pergunta pelo trabalho e inicia uma conversa sobre fotografia com o papá. Eu conto à avó as façanhas e aventuras das crianças, como o bebé já se segura em pé, e como a pequena já sabe fazer contas pelos dedos da mão. 

“Vai lá abrir o frigorífico a ver o que lá está à tua espera.” - diz a avó.

A pequena corre à cozinha, abre a porta do frigorífico e dá pulinhos de alegria. Vem da cozinha com as duas tigelas, uma de mousse de chocolate e outra com chantilly. Como nos conhece bem!

“Agora era um cafezinho daqueles...” - digo à avó e ela sorri.

Seguimos as duas para a cozinha e a avó tira do armário o moedor laranja de café, aquele que é mais velho que eu, cuja tampa tem marcas de uma qualquer pancada, mas que continua a trabalhar perfeitamente. E num minuto um cheiro a café acabado de moer enche o ar...ahhh, como eu adoro este cheiro!

No final ofereço-me para arrumar a cozinha. Enquanto olho pela janela da cozinha para a paisagem que me é tão familiar, ouço as gargalhadas do bebé, que está no colo da avó. Mesmo que os joelhos fraquejem, e que apenas o consiga ter nos braços sentada, aquele continua a ser o melhor colo de todos. E ele, como todas as crianças que por lá passaram, adora-o! A pequena está a dar um espectáculo de dança e cantoria, o papá e o avô continuam à mesa a conversar.

Começamos a arrumar as coisas para ir embora. A avó chama a pequena à salinha, e dá-lhe um saco de rebuçados que tem escondido atrás da almofada do sofá.

“Esconde no bolso para o papá não ver!” - diz-lhe em tom de conspiração, a pequena ri-se e mete os rebuçados no bolso.

“Não precisas de nada? Vai falar com o teu avô, ele ajuda!” -  sussurra-me para ninguém ouvir. Sorrio com ternura e dou-lhe um abraço: “Não precisamos de nada avó, obrigada!”

Despedimo-nos e voltamos a descer as escadas. Agarro-me ao corrimão de madeira, por onde tantas vezes escorreguei à socapa, para não escorregar com o bebé ao colo. A porta do quintal continua aberta, está sempre aberta, assim como a porta da vizinha de baixo, mas desta vez a vizinha também não aparece.

Acenámos mais uma vez à avó, que está na varanda, entramos no carro e arrancamos. Vamos com a barriga cheia, o coração completo e a alma leve. Vamos cheios de amor, com a certeza de voltar para mais.”



Uma das maiores tristezas que tenho é a minha avó nunca ter podido conhecer a minha família, e a minha família nunca ter podido conhecer a minha avó. Talvez por isso às vezes fantasie como seria se isso se tivesse concretizado. Este seria um dos muitos almoços que teríamos. E que eu adorava que fossem realidade e não fantasia.❤️



Comentários

  1. Ó minha querida, como eu sonhei este teu sonho e como eu dava tudo para o ver concretizado...
    Tenho a certeza que iria adorar a tua família, como tenho a certeza que lá do céu, de onde nos está a proteger, diz a todos os anjinhos que tens os bisnetos mais lindos do mundo. ❤️❤️

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